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O tema é recorrente em vários outros canais de comunicação: as pessoas estão lendo menos.

Eu não vou citar aqui as prováveis razões para esse fenômeno. Ele é complexo, antigo e eu não tenho nenhuma autoridade para discutir esse assunto de forma a trazer alguma contribuição efetiva para a discussão. Mas, se você quiser se aprofundar na questão, deixo no final, só pra você, alguns links interessantes.

Eu não posso explicar porque as pessoas estão lendo menos. Mas eu posso defender a leitura e porque eu tenho me dedicado ao universo literário há algum tempo.


Eu sempre fui uma criança solitária na escola. Não apenas por estar mudando constantemente de cidade -- e como consequência ser sempre a “novata” da classe --, mas por viver imersa num mundo interno só meu. Demorou muito para que eu aprendesse a arte do small talk* e me tornasse uma adolescente mais sociável. Porque conversar com pessoas é uma arte que se aprende; são poucas as que conseguem navegar sem tropeços no redemoinho das relações sociais.

Toda pessoa que foi uma criança solitária sabe dos dissabores da solidão. Eu não pertencia a nenhum grupo, era sempre a última a ser escolhida para um time e nem sei se meus colegas lembravam de meu nome espontaneamente. Eu estar presente ou ausente provavelmente não fazia diferença.

Mas eu não vim aqui para chorar as pitangas sobre esse fato. Eu vim pra contar porque eu defendo o livro, o universo literário e a leitura (coisas que parecem sinônimos, mas não são). Pois bem, eu defendo essas ideias porque meu companheiro de infância e adolescência foi o livro.

E foram muitas situações que marcaram minha relação com a leitura, especialmente quando entrei na adolescência, período em que a solidão da infância deixa de ser uma noção vaga para se tornar algo concreto, pois é quando finalmente nos damos conta de nossa solitude.

A primeira anedota é a que eu considero o marco de minha entrada verdadeira, definitiva e sem volta, no mundo da leitura: foi quando meus pais fizeram entrar em casa uma enciclopédia, daquelas de venda porta-a-porta, que talvez alguns de vocês tenham conhecido.


Foi amor à primeira vista. Eu fiquei tão encantada que não sabia qual ler primeiro, se a enciclopédia médica ou Moby Dick.

Pois foi a enciclopédia médica que respondeu muitas de minhas dúvidas sobre puberdade, época em que a gente quer saber, mas não tem coragem de perguntar. Foi também com ela que eu peguei a mania, que é bem bizarra, eu admito, de usar termos médicos para as doenças e anatomia humana (não é tirar as amígdalas, é amigdalectomia. Não estou com dor nos ombros, mas no músculo trapézio e dor nas costas tem que vir acompanhada da indicação cervical, torácica ou lombar). As páginas tinham um odor característico de papel brilhante e impressão fotográfica que eu nunca esqueci. Os “ratos de biblioteca” que lêem esse texto vão saber do que eu estou falando. Eu gostava de ler só pelo prazer de conhecer. Mas sem que eu percebesse na época, foi essa coleção que me fez amar e valorizar a ciência. O texto era técnico, mas acessível, e ali, aos poucos, ia se revelando para mim a história das descobertas, a importância da pesquisa científica e como a vida era mais sofrida e incerta antes dessas inovações.


Já Moby Dick inspirou a minha série de ilustrações bem amadoras de cachalotes. Devo ter rabiscado uma centena delas em tudo quanto é folha de papel. Até hoje a abertura do livro me fascina. Três palavras apenas, mas que ditam a força da história: “chamai-me Ismael”. E se até hoje não sei como pronunciar Quiqueg, minha memória tem perfeitamente delineada a imagem desse arpoador, de poucas palavras que dizem muito. Lembro-me que, entusiasmada com o livro, eu escrevi espontaneamente uma redação de várias páginas que corajosamente propus ler para a classe, numa aula de português.


Também me lembro nitidamente da reação da professora, que na metade da segunda folha me cortou com um “vai demorar muito pra terminar?”. Tenho quase certeza de que ela me detestava — professora Sônia, se você estiver lendo esse texto, é de você mesma que estou falando — mas justamente porque minha redação foi inspirada pelo livro e não pelas aulas que a opinião da professora não teve muita importância para mim. Em minha visão de menina a professora Sônia não gostava de histórias, portanto ela não poderia entender do que eu estava falando.

Foi nessa época que eu deixei a escola primária para entrar na quinta série (hoje sexto ano), no colégio dos grandes. Eu era um toco, e ainda por cima estava um ano adiantada. Por isso mesmo o colégio me parecia grande demais para mim. Eu andava pelos cantos perdida como um cordeiro longe da mãe, e ainda mais distraída no meu universo particular de fantasia e aventura alimentada pelos livros. Poucos dias depois do início do ano letivo, eu descobri a biblioteca. Ao escrever essas palavras, nesse momento mesmo, me vem o som de um coro de anjos e uma luz diáfana pela simples menção do nome “Biblioteca”!


Por mais esforçados que meus pais fossem, o número de obras que tínhamos em casa era bem limitado. Mas ao passar pelas portas da Biblioteca do Colégio Estadual Ivo Leão, eu entrei no universo que até ali só existia em minha cabeça.

De um momento para outro eu podia ir das viagens espaciais até o Egito Antigo. Era como se o mundo todo coubesse naquela sala. E para completar esse espaço de liberdade e conquista do mundo, havia um globo, que eu girava para logo em seguida, de olhos fechados, apontar aleatoriamente para saber onde eu iria viver quando crescesse — em algum momento eu devo ter apontado a França!


A experiência já estava sendo determinante para influenciar para todo sempre o meu espírito, mas foi no momento em que eu procurava um livro para emprestar — como eu me sentia poderosa tendo a “carteirinha da biblioteca” — que caiu em minhas mãos uma obra cujo título, do alto dos meus dez, onze anos, eu achei engraçado: A divina comédia, de um certo Dante Alighieri. Era um livro grosso, mas já ali eu sabia que não importava o número de páginas. E eu li a viagem de Dante, que tinha como guia ninguém menos que Virgílio e também a bela Beatrice (qualquer aproximação com Berenice não é mera coincidência!). E depois disso nunca mais parei.


Após esse encontro, eu passava muito tempo entre as estantes da biblioteca. Era meu refúgio de silêncio, não-julgamento e fantasia. Era o lugar onde eu podia aprender apenas o que me interessava.

Com o passar do tempo eu fui fazendo amigos, e a biblioteca foi se tornando um porto seguro para o qual eu já não precisava fugir, mas que eu visitava pelo simples prazer do reencontro.


Nos anos que vieram, a leitura de Dante me preparou para muitos outros livros. Foi também Dante que me mostrou que todo livro tem seu valor. Sim, porque se eu li essa obra tão complicada e respeitada até hoje, eu também li romances água-com-açúcar (num deles eu aprendi sobre a diáspora dos sobreviventes do holocausto e sobre o iídiche), e chorei rios de lágrimas com um livro da coleção do Reader’s Digest: uma história sobre uma professora que se instala num vilarejo quaker no século 19.

Eu não me considero uma grande leitora — e eu falo sério —, mas o livro ocupa uma parte importante em minha vida e em meu bem-estar. Até hoje eu preservo o meu mundo interior e eu considero que é o livro que me permite isso.

O livro me dá repouso, alento. Ele me tira de momentos difíceis para me levar para vidas e paisagens que me são desconhecidas. No instante em que começo a ler eu deixo de existir para me tornar simples observadora. Sem problemas ou compromissos. Sem aflições ou expectativas. Apenas observo.

E é por isso que para mim, acima de tudo Berenice da Capadócia é uma homenagem ao mundo da contação de histórias. O ciclo de passagem de bastão entre Matathias, Berenice, Flavius e o leitor celebra essa nossa capacidade humana de nos abstrair, sair de nós mesmos para imaginarmos soluções para as perguntas da vida através da história inventada da vida alheia. A aventura de escritora não tem sido fácil. É difícil cativar o público, convencer as pessoas a darem uma chance ao livro. Mas eu acredito nele. Eu acredito no poder da leitura porque eu mesma sou uma beneficiária desse poder.


Há muitas razões pelas quais as pessoas não lêem ou deixam de ler e cada qual sabe o que faz vibrar sua alma. Mas caso você esteja se perguntando se vale a pena gastar alguns minutos de seus dias imerso ou imersa nas páginas de um livro, eu só posso te felicitar. Escolhendo ler você está se permitindo um encontro com um amigo fiel, que tem o dom da palavra e que sempre vai refletir o melhor de você mesmo.

Boa leitura.



Aqui estão os links para você entender qual a relação do Brasil com a leitura:

Are We Reading Less, and If so, Why?

Why We Don’t Read, Revisited

Almost half of the adults in the UK aren’t reading books


O sol está levantando e a estação está lotada. Na plataforma a multidão se agita com os últimos preparativos da viagem. Uns carregam tudo o que é necessário para atender a quaisquer necessidades do trajeto, outros não levam nada. Mas ainda que cada um carregue bagagens diferentes, todos viajarão no mesmo tipo de vagão. Não há atrasos ou adiantamentos: tudo flui pontualmente de forma muito organizada. Entretanto, nenhum passageiro recebeu informações sobre como se desenvolverá a viagem.

O trem finalmente chega e todos embarcam. Os lugares são determinados pelo tipo de bilhete, previamente adquiridos não pelos próprios passageiros e sim por suas famílias. Obviamente há uns raros ocupantes a quem o bilhete foi dado por uma família rica. Esses têm assentos confortáveis, espaçosos, privados. Essas instalações são tão distintas e em tão pequeno número, que acabam parecendo uma anomalia, como se fossem assentos que pertencessem a outro trem. O fato é que a grande maioria dos passageiros ocupa assentos comuns.

Na verdade, visto de longe todos os assentos são iguais, mas nessa longa viagem, os detalhes farão grande diferença, pois algumas poltronas são limpas, com estofamento impecável, enquanto outras têm tecido gasto, às vezes esburacado, com molas aparentes que causam desde um simples desconforto até ferimentos importantes. Há poltronas tão danificadas que causarão o desembarque antecipado de muitos.

Seria esperado que as poltronas confortáveis oferecessem a seus ocupantes uma viagem sem incidentes, mas ao longo do trajeto eles também acabam por sentir algum desconforto. Não existem poltronas perfeitas!

Uma vez que todos tenham se instalado em seus devidos lugares, o trem inicia seu longo trajeto. A origem e o destino final tem pouca importância: o que conta para todos é a viagem.


E os passageiros, quem são?

Em aparência todos são iguais. Não seria exagero dizer que quem viu um, viu todos. Um ou outro detalhe aqui e ali, mas visto de uma certa distância, eles formam um só grupo. O que os distingue não são os traços físicos, mas sim suas personalidades. Isso porque serão o temperamento, a atitude e a adaptabilidade o que determinará a percepção de cada um do sucesso ou fracasso da viagem.

Mas não há um espaço determinado para cada categoria. Não há o vagão dos insatisfeitos, ou dos alegres, ou dos belicosos e assim por diante. Não! Todos estarão “juntos e misturados”. Não esqueçamos: é o mesmo trem para TODOS.

O que significa que ao longo do trajeto todos terão que encontrar maneiras de conviver. E é aí que a viagem fica interessante. Não só cada passageiro terá que lidar com suas próprias necessidades e expectativas, mas também com as necessidades e expectativas de seu vizinho de poltrona, de fileira, de vagão e de todo o comboio, pois muitíssimos viajantes vão acabar mudando de assento durante o caminho. Vejamos como alguns ocupantes vão viver a experiência.

Sentado à janela há uma pessoa que tudo observa. Nenhum detalhe lhe escapa e ela analisa o comportamento de cada passageiro em que seus olhos pousam. Ela espera dos outros ocupantes um certo tipo de atitude que apenas ela sabe qual é. É uma pessoa muito crítica com o outro, mas também consigo. Sua viagem provavelmente será insatisfatória pois há grande probabilidade de que suas expectativas nunca sejam satisfeitas. Essa pessoa está tão ocupada em seu mundo de criticismo que nem ao menos observa a paisagem que se desenrola pela janela. Ao final da viagem ela não saberá dizer se o trajeto era bonito ou feio.

Há muitas e muitas famílias viajando juntas. Para elas a viagem se desenrola sem contratempos e todos estão bastante confortáveis nos lugares que ocupam. Parece que nada vai estragar o passeio. Mas o trem faz muitas paradas e numa delas, sem que ninguém entenda o porquê, alguns membros desembarcam para não mais reembarcar. Quando o trem retoma o trajeto, os que continuam ficam completamente perdidos. Passado um tempo, algumas famílias conseguem reencontrar seus lugares e sua serenidade. Eles continuam, talvez menos alegres do que antes, pois prefeririam continuar todos juntos, mas eles ainda são capazes de continuar aproveitando a viagem. Já para outras a confusão causada pela saída de um familiar é perturbadora demais. Eles não conseguem mais se reorientar e acabam por não mais encontrar seus assentos, dispersando-se ao longo dos vagões. Há inclusive aqueles para quem a falta é tão grande que eles perderão completamente o interesse pelo resto da viagem.

Muitos assentos são ocupados por passageiros exigentes. São pessoas que esperam que suas necessidades sejam permanentemente satisfeitas. Elas estão tão ocupadas consigo mesmas que nem se interrogam sobre a existência dos outros. Qualquer desconforto ou contrariedade e elas exigem em alto e bom tom que alguém resolva o problema. Alguns desses passageiros encontram outros dispostos a atendê-los, mas uma grande parte termina a viagem sozinha pois seus vizinhos, cansados de tantas exigências e tendo outras coisas para fazer, acabam mudando de lugar.

No sentido contrário aos exigentes, há aqueles que passam todo o caminho atendendo às necessidades dos outros. Estão sempre parecendo alegres e dispostos a abrir mão de seu sossego para ajudar o próximo. Entre essas pessoas há as que o fazem de forma tão natural que é evidente que o altruísmo faz parte de sua bagagem. Para elas, o bem-estar geral é o que determina o prazer da viagem. Mas nem todos os passageiros sorridentes e prestativos assim agem de forma natural. Muitos o fazem para não terem que se confrontar à sua própria experiência de viagem. De maneira geral elas estão insatisfeitas com seus lugares e apegar-se a outro passageiro lhes evita terem que ficar ali sentadas. O problema é que essas pessoas não só acabam por impor sua solicitude, mas também esperam gratidão e reconhecimento por uma ajuda que geralmente não foi solicitada. Viajar ao lado dessas pessoas acaba se tornando cansativo.

Uma outra categoria - e ela é bem grande - é a dos ansiosos. Ainda que ninguém no trem saiba de onde ele veio e para onde ele vai, essas pessoas passam todo o caminho se perguntando sobre o que virá na próxima curva. Algumas são tão inquietas que se colocam na extremidade dianteira do vagão, a cara colada na janela, tentando ver o que se passa à frente. O problema é que a visão é limitada e as chances são de que elas interpretem erroneamente o que viram: uma simples nuvem parece uma tempestade e um raio de sol cria a ilusão de um céu sem nuvens. Por causa desse medo do desconhecido, alguns colocam-se colados na extremidade traseira do vagão, olhando o que passou e sentindo nostalgia pelo trajeto já trilhado, que não foi necessariamente bom, mas por ser conhecido traz a elas um conforto. Esses passageiros vão acabar perdendo a oportunidade de viver tantas coisas interessantes que se passam do lado de dentro do vagão em que viajam.

Um grupo curioso é o dos desinteressados. Desde o embarque - a quem alguém teve que não só mostrar o caminho, mas conduzi-los até ali - eles simplesmente se instalam em suas poltronas e por ali ficam, não se importando com nada do que se passa no trem. Nada solicitam, mas também nada oferecem. Que o trajeto seja longo ou curto, que hajam acidentes, que seus companheiros desembarquem antes do destino final, nada disso importa. Essas pessoas viajam num estado de apatia constante. Algumas, porém, conseguem despertar em algum momento em que o trem sofre solavancos. A partir daí elas conseguem interagir e aproveitar. Nenhum passageiro do trem é obrigado a fazer todo o trajeto no mesmo estado de espírito.

Um grupo pequeno, mas do qual qualquer um pode escolher fazer parte a qualquer momento da viagem é o que pode ser chamado de passageiros despertos. Esses são os que conseguem assimilar as inconstâncias e incertitudes da viagem. Durante todo o trajeto eles estarão dispostos a fazer concessões e tentarão o melhor que puderem se adaptar às circunstâncias, pois até aqueles bem instalados no início podem acabar tendo que mudar para poltronas mais desconfortáveis. O que não significa que eles são indiferentes à viagem; como qualquer outro passageiro eles também se entristecem quando um próximo desembarca no caminho e também se preocupam com o que os aguarda no trajeto, só que elas aceitam as incertitudes. Muitas delas, inclusive, estão tão à vontade com isso que conseguem aproveitar cada instante de calmaria, sem medo da próxima curva ou túnel escuro. Esses passageiros dialogam e trocam ideias com seus vizinhos de vagão, participam das atividades propostas pela organização do trem e recarregam as energias, nos momentos mais conturbados, apreciando a paisagem que se desenrola pela janela e que nunca se repete.

Há muitos outros tipos de passageiros, alguns tão únicos que não cabem em nenhuma categoria. E se alguém perguntar aos ocupantes quem é o maquinista (se é que há um), quem construiu o trem ou quem faz sua manutenção, vai ouvir as mais diversas respostas, pois como foi dito antes, essa viagem é tão bem organizada que dispensa controladores e tripulação, então ninguém pode afirmar com certeza como a viagem acontece. Mas essa talvez seja uma pergunta desnecessária: uma vez embarcado, a viagem acontecerá, independente da vontade do que quer que seja. O que fará diferença ao final do trajeto é que tipo de passageiro cada um escolhe ser.



“Quando sou eu que te olho, você me evita.

Quando você vem em busca de meu calor,

Sou eu quem não tem tempo, nessa vida aflita.

Você chama por mim, um apelo de amor ecoa em sua voz.

Eu chamo por você, mas encontro ouvidos indiferentes. Ai de nós!

Mas há um momento em que você e eu sintonizamos,

Em que colocamos todas as nossas diferenças de lado

E nos colocamos lado a lado, mansos, satisfeitos, contenta-mente.

Até quando será assim? Oxalá esse amor perdure além dos limites,

E que tenhamos um ao outro assim mesmo, nesse amor fluido,leve e inconsistente.”


Ao ler essas linhas, o que vem em sua mente: a história de um casal que não se entende? Um casal que se entende em alguns momentos apenas?

Ou o que você vê é o reflexo de uma relação que você já viveu ou está vivendo?

Você ‘ouve’ uma mulher falando? Um homem?

Essa voz é jovem ou velha?

Seriam as palavras de um pai ou mãe falando para seu filho ainda pequenino?

Afinal, o que diz e a quem diz esse poema?


Pois bem, eu lhe digo o que eu tinha em mente quando o escrevi e aí você responde “ah, bom?”. Escrevi esse poema para meus dois gatos, indiferentemente. Porque ter um gato é viver um constante “quando eu te quero você não me quer”. Mas quando mestre e gato sintonizam, passam-se momentos do mais perfeito contentamento, que nos convence de que essa convivência vale a pena.

Mas há grandes chance de que você tenha lido algo bem diferente do que eu tinha em mente quando escrevi esse poema.

Da mesma maneira um livro, uma história contada na forma de letras sobre o papel (ou sobre a tela de nossas parafernálias eletrônicas), também será lido com os olhos do leitor.

Ainda que o J.R.R. Tolkien (1892-1973), tenha dito o contrário, ele nada pôde fazer para evitar as comparações de O senhor dos Anéis com a Segunda Guerra Mundial, nem as mais elaboradas teorias sobre o “real” significado de suas obras.

O nome de Niccolò Macchiavelli(1469-1527), foi cunhado como “(ação ou pessoa)em que predomina a astúcia, a má-fé e o oportunismo”*, a partir de sua obra mais famosa, O príncipe. Mas nem o fato de Macchiavelli ter servido como secretário de guerra na República de Florença, e de sua obra ser considerada como grande influenciadora da onda de transformação de reinos em repúblicas a partir do século XVI impedem muitos de considerar O Príncipe como uma obra de exaltação da monarquia.

Não acredito nem mesmo ser necessário mencionar aqui a interpretação dos textos canônicos das três maiores religiões da atualidade, a Torah, a Bíblia e o Al-Quran.


O livro é lido com os olhos do leitor…

Quando eu estava tateando sobre os caminhos que o livro Berenice da Capadócia iria tomar, foi meu querido editor quem me disse que “uma vez publicado, a Berenice vai deixar de ser sua, para se tornar a Berenice do leitor”.

Nesse momento, eu senti ciúmes. Como assim, não vai ser mais a minha Berenice? Que Berenice será essa, pois?

Então o livro foi lançado e as pessoas começaram a me falar do que leram. E eu fiquei encantada com as berenices que me foram descritas, pois eram personagens inspiradoras. Mas cada uma à sua maneira.


As pessoas não ficaram tão emocionadas com passagens que me tocaram mais. Nem se impressionaram com aquilo que me impressionou, mas com passagens que, no momento de escrever, eu não achei tão relevantes.

Isso porque o livro se conecta a vivência individual. Ele vai trazer à tona variadas lembranças de infância, diferentes visões sobre amizade e versões próprias de romance e amor.


E por mais que eu tenha em mente uma certa paisagem da Capadócia e do Império Romano do século IV, por mais que as ruas das cidades por onde Berenice passou se desvelem para mim numa certa paleta de cores, quem lê o livro vai ver, cheirar e sentir essas mesmas ruas de forma talvez bem diferente.

Eu me pergunto até se alguém se identificará com as nuances nebulosas de Llewellyn (ainda mais com o que virá na no Volume 2), ou com outro personagem da história.


Muito se discute sobre a influência do leitor sobre quem escreve, e como ela pode ser perniciosa (porque você acha que George R. R. Martin ainda não terminou "As crônicas de gelo e fogo", aka Guerra dos tronos?). Eu mesma admito que se ficar pensando muito no que agrada o leitor, acabo ficando de mãos completamente atadas, porque eu simplesmente não sei o que agrada. Isso porque não há fórmula para escrever a história perfeita. Cada leitor é único e querer saber o que se passa em sua mente seria de uma arrogância sem par.


E isso é valioso para mim. Esse universo de possibilidades de leitura e interpretação acabam por me dar uma liberdade sem limites. Meu único compromisso é com a própria história. Eu posso descrever todas as emoções humanas que eu for capaz, porque sei que elas vão ecoar em muitos espíritos de forma livre, sem as amarras da minha própria intenção.

Vendo assim, eu volto na frase do editor. Aqui está para você, Berenice da Capadócia, uma jornada do não-herói que é sua, entrego em suas mãos. E não duvido de que sob seu olhar, o livro possa acabar sendo muito melhor do que o que eu mesma escrevi.

Boa leitura!



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